Dois relógios. Uma dança de ponteiros descoordenados, indecisos entre o avanço ou recuo, num eco de silêncio pela sala que não existe. Escrevo num papel flutuante estas frases que me surgiram, há meses, passeando por uma estrada sem vida. Apaguei-as da memória e cessei a sua existência para as evocar agora, na minha divindade de criador virtual, e dar-lhes pulsar. Encontro-lhes significados que antes não existiam e que pouco sentido parecem fazer. Registo sem propósito e um dia o encontrarei. Não preciso de saber tudo agora. Sei, isso sim, que se não fosse pelo corpo, seria imortal. Juro-o porque noto-o na minha ausência, quando opto por levantar os dois pés em simultâneo. Deixo-me de pé, leve, hirto, descalço e sem cobertas. As costas retas, mas não de forma pouco convidativa. Permito-me a uma transparência entre o azul, branco e cinzento claro e, como se um vento que não sinto viesse do centro da terra, os calcanhares erguem-se sem esforço. Descolam-se do chão, cujo material não importa por não existir matéria (ou, se existir, será um vidro que permita ver a infinita profundidade do nada), e aos poucos vou perdendo a firmeza das plantas. Depois, apenas os dedos. Mais uns centímetros e só as unhas tocam o chão até que, em menos de escassos segundos, levito. Fico, primeiro, a uns palmos do piso. Não escondo a minha inexperiência de voo e vou-me desequilibrando, tocando com as pontas na superfície, para ter a certeza que ainda lá está. Olho os braços e narro-me. Depois olho em volta, para o níveo. Invade-me uma segurança e coragem e vejo-me na trajetória de um foguetão. Rodopio, vezes várias, como vim a treinar em natação, e ultrapasso o limite do céu. Assim é o deslocar para a ausência de que falava. Faço-o várias vezes, embora não o tenha rotinado. Normalmente é lá que estou. Onde há tudo e tudo é mais interessante. É o meu espaço omnipotente, onde me permito visualizar sem esforço. Incito-me a produzir e vejo as invenções flutuar à minha volta na forma de meteoritos animados, quase queridos ou esteticamente desejáveis. Entro na biblioteca do que sou e vejo o corredor infinito de estantes de carvalho. Caminho, mas nunca chegarei ao fim para tudo ver. Puxo de um manuscrito – será de papiro e é amarelado – e sinto o peso das duas mil páginas. Abro-o, mas nada se lê. O texto foi escrito em tinta invisível e nem o próprio autor sabe o que contém. Nem tem que. Fecho o livro, volto a colocar o pé em cima da estante, estico o braço e pouso-o na prateleira mais alta. Depois disso, volto ao chão e continuo a andar. Não voo na minha biblioteca; não preciso. Ela já voa por si e seria falta de respeito não estar bem assente. Tanto caderno de mim e eu sem saber quem sou. Tanta pista e, eu, nada. Mas queres saber quem és ou queres ser tanto que não saberias dizer o quê? A ambiguidade cativa-me. A vida reside na beleza da complexidade. E suga-me um tubo invisível e a biblioteca desaparece. Voo novamente, mas estou parado. Deixo-me existir, apenas. E é bom. Esta distração planeada. Amanhã acordo e já sei o que virá. O novo esquecimento da minha imortalidade. Mas hoje não. Hoje lembro-me dela e tenho-a em mim. Sou-me. 

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