Filha de Noite Cheia
Pés descalços, sujos e em ferida num descampado tórrido pelo deserto interior do país; raízes algarvias com um pouco de ar alentejano e espanhol. O sol branco aquecia o cume do céu e não havia sombras. A própria respiração era quente, abafada. A pele seca e morena do meu corpo, que dava sinais de que iria descascar em breve, encontrava-se isenta de banhos limpos há vários dias e a barba que me crescia, despenteada, pelo pescoço, começava a dar comichão. As minhas pernas, vestidas por uns calções de banho de cor gasta, estavam cobertas, até às canelas, por uma poeira esbranquiçada, trazida pelo vento, que contrastava com a minha tez.
Entre parques de campismo e dormidas na caravana à beira da estrada, a instabilidade dos dias começara a ressentir o meu corpo e adotei um novo andar por causa dos meus gémeos cansados. A alimentação também era irregular: tanto se comia de uma em uma hora, como se passavam cinco horas em jejum, e não há horários para nada. Agora que tínhamos cumprido os principais objetivos da viagem, teimávamos em adiar o destino final: casa. E este estado de incerteza relativamente à próxima decisão a tomar vem com a mesma dose de aventura e monotonia.
Isto passava-se depois da hora de almoço, quando dei por mim sentado num passeio irregular ao lado de uma árvore, com os olhos semicerrados por aquela luz brilhante e uma garrafa de água gaseificada com sabor nas mãos. Antes disso, a manhã (que tinha começado perto do meio dia) tinha sido passada num castelo antigo, de terreno irregular, que outrora fora uma fortaleza contra os mouros e conservava, ainda, vários objetos históricos. À saída, dei por mim colher o fruto seco de umas das muitas amendoeiras lá plantadas e depois disso fomos à praia. O meu físico estava cansado e não me recordo se acabei por adormecer na areia. Tenho notado que me lembro de poucas coisas destes últimos dias - o ontem parece ter sido hoje de manhã e o hoje de manhã parece ter sido a semana passada. Mas a verdade é que as endorfinas de uma corrida pela praia, o mar e as algas que se me colaram ao corpo quando mergulhei nas ondas, serviram para me revitalizar.
E, num ápice, em distrações mundanas, o dia transformou-se em noite e uma lua gigante nascia no céu. Caminhei em transe em direção à lua e atravessei a estrada. Vesti um casaco de carapuço por cima do meu tronco descoberto e regressei à praia, apreciando as sombras criadas por aquela luz natural. O caminho estava bastante escuro e tive que prestar mais atenção aos estrados de madeira à medida que os últimos casais com filhos abandonavam a praia, carregando sacos e toalhas por dobrar.
Os meus pés enterraram-se na areia, agora mais fria, e senti, embora nunca o poderá ser, que estava num espaço exclusivamente meu. Ao longe, fora de campo, dois vultos negros estavam de pé junto ao mar e supus que fossem pescadores. Encontrei-me mais perto da água e ajoelhei-me, ora de cabeça submissa em sinal de introspeção, ora a contemplar o céu estrelado que me protegia.
Era véspera de lua cheia e amanhã a lua estará numa fase que só será novamente observável em 2020. Mas foi a lua de hoje que me sorriu. Talvez amanhã fá-lo-á de novo. Ou talvez nos esqueçamos um do outro. Sorri após umas palavras mentais e outras verbais e levantei-me de mãos juntas. Passei, meio encolhido, por entre os sombreiros artificias colocados no começo da areia e saí da praia a correr. Escrever. Nada imortaliza e homenageia mais um momento que a escrita.
(14/8)
Entre parques de campismo e dormidas na caravana à beira da estrada, a instabilidade dos dias começara a ressentir o meu corpo e adotei um novo andar por causa dos meus gémeos cansados. A alimentação também era irregular: tanto se comia de uma em uma hora, como se passavam cinco horas em jejum, e não há horários para nada. Agora que tínhamos cumprido os principais objetivos da viagem, teimávamos em adiar o destino final: casa. E este estado de incerteza relativamente à próxima decisão a tomar vem com a mesma dose de aventura e monotonia.
Isto passava-se depois da hora de almoço, quando dei por mim sentado num passeio irregular ao lado de uma árvore, com os olhos semicerrados por aquela luz brilhante e uma garrafa de água gaseificada com sabor nas mãos. Antes disso, a manhã (que tinha começado perto do meio dia) tinha sido passada num castelo antigo, de terreno irregular, que outrora fora uma fortaleza contra os mouros e conservava, ainda, vários objetos históricos. À saída, dei por mim colher o fruto seco de umas das muitas amendoeiras lá plantadas e depois disso fomos à praia. O meu físico estava cansado e não me recordo se acabei por adormecer na areia. Tenho notado que me lembro de poucas coisas destes últimos dias - o ontem parece ter sido hoje de manhã e o hoje de manhã parece ter sido a semana passada. Mas a verdade é que as endorfinas de uma corrida pela praia, o mar e as algas que se me colaram ao corpo quando mergulhei nas ondas, serviram para me revitalizar.
E, num ápice, em distrações mundanas, o dia transformou-se em noite e uma lua gigante nascia no céu. Caminhei em transe em direção à lua e atravessei a estrada. Vesti um casaco de carapuço por cima do meu tronco descoberto e regressei à praia, apreciando as sombras criadas por aquela luz natural. O caminho estava bastante escuro e tive que prestar mais atenção aos estrados de madeira à medida que os últimos casais com filhos abandonavam a praia, carregando sacos e toalhas por dobrar.
Os meus pés enterraram-se na areia, agora mais fria, e senti, embora nunca o poderá ser, que estava num espaço exclusivamente meu. Ao longe, fora de campo, dois vultos negros estavam de pé junto ao mar e supus que fossem pescadores. Encontrei-me mais perto da água e ajoelhei-me, ora de cabeça submissa em sinal de introspeção, ora a contemplar o céu estrelado que me protegia.
Era véspera de lua cheia e amanhã a lua estará numa fase que só será novamente observável em 2020. Mas foi a lua de hoje que me sorriu. Talvez amanhã fá-lo-á de novo. Ou talvez nos esqueçamos um do outro. Sorri após umas palavras mentais e outras verbais e levantei-me de mãos juntas. Passei, meio encolhido, por entre os sombreiros artificias colocados no começo da areia e saí da praia a correr. Escrever. Nada imortaliza e homenageia mais um momento que a escrita.
(14/8)
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