A casa do velho

    O velho sentou-se e espreitou pela maior janela da sua velha casa. A mesa era rodeada por quatro bancos empoeirados e instáveis, ocupados por trapos e livros gastos. A mesa estava encostada à tal janela já amarelada e com uma transparência baça estragada pelo tempo. Recusava-se a arrumar a casa e muito menos a chamar alguém que o fizesse por ele. Gostava da desarrumação ordenada que tinha sido toda a sua vida.
    Pincéis endurecidos e algumas paletes que da sua avó tinha herdado encontravam-se espalhadas no cimo de uma cómoda com várias velas de ponta torrada e já sem cera. A cozinha era simplista: uma panela, dois talheres, um copo. Porquê guardar bens que não são precisos? Mas ele guardava... A pequena dispensa escura e sem porta era palco de memórias que a velhice se recusava a guardar nos pensamentos: louça, fotografias, brinquedos. Pouco se lembrava do que comera na noite anterior, mas duvidava que isso fosse sinal de velhice. Não somos todos assim? Sabia que, se por isso se esforçasse, lembrar-se-ia de tudo. Mas não valeria a pena.
    Folheou as páginas coladas de um livro antigo que tinha nas suas mãos, mas não lhe apetecia ler. Fechou-o sem separador e afastou-o de si. Com as unhas curvadas de uns dedos fortes abriu uma frágil caixa que à sua frente se encontrava. Um pequeno espelho enevoado olhou-o e os seus olhos azuis enrugados sorriram-lhe. A pele continuava morena e a barba estava em constante batalha com a lâmina. Uma apertada boina de navegante dos mares - ou seria de caçador?, não sabia dizer - estava-lhe enterrada na cabeça. Do lado esquerdo da face, um velho sinal de nascença cumprimentou-o. Baixou os olhos e contemplou um conjunto de charutos clássicos e algumas cigarrilhas que foi colecionando. Do lado direito, num espaço retangular para isso destinado, uma caixa de fósforos já sem cor. Levou a cigarrilha à boca e, com as mãos ligeiramente trémulas, acendeu-o. Olhou para o exterior, sem nada querer ver, só olhando, à medida que o pequeno pedaço de madeira queimava sobre uma tábua que usava para cortar pão. Hoje não quisera comer pão e a barriga não protestara, como habitualmente.
    A uns metros de si estava o velho sofá, esburacado por antigos e fiéis animais domésticos que tivera. Feridas que o velho não quis curar. Uma manta branca e duas almofadas carinhosamente bordadas à mão por alguém que outrora amara e já não existe ocupavam-se de disfarçar algumas das imperfeições. Deixava-as apenas por uma questão afeto, isto porque considerava que as imperfeições existiam para ser vistas. Ao fundo, perto da porta, um cabide segurava apenas uma camisa de sarja que não era sua e lhe tinha sido emprestada numa noite fresca de verão com muito fumo e filosofias à mistura. Um velho sabonete por usar estava aleatoriamente pousado sobre uma poltrona da família e assim era há anos. Anéis esculpidos de desenhos estavam aí também tombados. Um velho bastão rachado tentava manter-se de pé junto à porta e os cinco simbolos mantinham-se visíveis como se o tempo e as viagens não tivessem passado por ele. Memórias que o seu Eu novo ainda não tinha criado estavam espalhadas pelo chão, à espera de ganhar forma. A relatividade do tempo tinha dessas coisas; memórias que existem do que não aconteceu ainda e momentos reais independentes de memórias.
    Não se ouvia em toda a casa nada mais que a sua forte e arrastada respiração, interrompida apenas pelo momento em que saboreava o fumo a dançar no interior da boca. Os vários relógios insistiam em igualar em som através dos ponteiros dos segundos que, assincronamente, caminharam em círculo durante toda a vida. Pouca atenção prestava às horas, o relógio era simbólico apenas. A ausência de rotina tinha-se tornado rotina.
    Levantou-se e, num caminhar levado por pernas atléticas, saiu de casa. Os raios de luz pós-almoço exibiam-se e tocavam em tudo o que existia. As sombras eram temporárias. Um campo de cereais e de altas espigas de milho estendiam-se por centenas de metros. Há muito perdera a capacidade ou o interesse de ceifar. Eventualmente tudo morreria, morrerá e morreu.
    Sorriu, assim bem por dentro. Memórias. Tanta coisa. Anos e anos e, ainda assim, quando a altura chegava, de pouco se lembrava. Uns rostos, uns nomes, umas frases que ficaram e algumas ocasiões especiais. No fim fora isso que restara. Uma nostalgia triste mas amorosa invadiu-o e uma lágrima formou-se-lhe no princípio do olho. Não queria acreditar que algo existisse após os ultimo suspiro, o ultimo trago; queria acreditar que algo tivesse visto, registado tudo. Queria acreditar que algo acompanhou a sua vida como uma lente acompanha uma personagem. O mais detalhado momento. Queria acreditar que esse registo estivesse guardado algures, perdido, até, nos confins do destino, mas que existisse. Toda a vida é digna de algo assim. De uma espécie de filme.
    Os dias eram um pouco repetitivos, quase que a aguardar que algo viesse. Mas não se sentia triste, ou sozinho, nem se preocupava em tentar sentir nada desde que no peito permanecesse um fogo que sempre sentiu quando tudo estava bem. Tudo tinha feito que queria e, se não o fez, fora porque não o quis realmente. Tinha saudades do mar, apenas isso. Sorriu para Tudo e Tudo sorriu-lhe de volta. Lá dentro, o fósforo morria na tábua de cortar pão.

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