Um belo hino à vida

    Pousei a mochila no chão, abri-a e retirei de lá uma toalha que estiquei na relva do rio. O domingo de calor trouxe as pessoas que, com elas, trouxeram as moscas teimosas e irrequietas. Sentei-me para olhar. Famílias emigrantes regressaram à origem e as várias etnias ocupavam todo o espaço. Estou habituado à quietude deste local. Por vezes venho aqui no inverno e banho-me três ou sete vezes na água gelada. Assim me limpo. Água fria congela e derrete tudo aquilo de que não preciso. Mas hoje não havia quietude.
    Indiferente ao quotidiano dos outros e farto de olhar para o nada, depressa me levantei e dirigi à pequena queda de água. A dificuldade habitual de tentar não escorregar nas pedras era agravada pelo embaraço de caminhar devido à quantidade de pessoas que, ali de pé, se habituavam à ideia de mergulhar na água, aparentemente pouco apetecível.
    Diferente ao que normalmente faço, não fiquei também de pé à procura de algo que me motivasse a entrar na água porque, quando dei por mim, já me encontrava completamente coberto pelo rio. O sol forte opunha-se ao sol de inverno. Os raios penetravam a superfície e era possível, assim, contemplar o fundo sem correr o risco de embater em alguma rocha. Nadei um pouco, rasgando a água e as folhas que boiavam. Depois, de pé, dei por mim a olhar para o seguimento do rio, ao longe, rodeado por árvores e livre de humanidade.
    Do lado esquerdo reparei que muitos eram aqueles que trepavam a uma árvore, se dirigiam à ponta de uma prancha e saltavam, pelo que foi para lá que me comandei. Dei umas braçadas e depressa estava em terra, num terreno lamacento que atribuía às minhas passadas um som peculiar à medida que os pés se iam enterrando. Depois de esperar, subi também à árvore, peguei num tronco e aproximei de mim uma corda que me lançou para a água. A minha insatisfação em relação ao mergulho depressa me levou, mais uma vez, ao topo da árvore cujo sucesso na queda, numa segunda tentativa, me incentivou a repetir. Assim foram passando uns minutos até que me deitei na toalha a ler.
    O ambiente estava demasiado humano. Era impossível assim não o ser. O segredo é conseguir encontrar a Natureza nesses momentos. Contudo, não foi, na verdade, o Homem que me despertava mas sim as moscas que não me largavam.
   "As palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso mesmo, os nomes que lhes deste", dizia-me Saramago nas mãos.
    Assim foram passadas as horas. Abanões constantes ao ar, em tentativa de me imunizar dos insetos voadores e uma infinita correção da postura, de modo a que o sol não importunasse o meu livro. Havia, apesar da azáfama, uma profunda paz.
    Decidi que era tempo de me levantar e regressei ao rio, que me puxou ao topo da árvore e me levou de novo à água, onde tudo nasce e morre. Deixei-me submergir a juntei as mãos em agradecimento. Agora já não devia nada a ninguém.
    O meu próximo destino seria um chuveiro de espuma. Os pés sujos de terra, os pequenos caules presos às pernas e a pele tocada pelos insetos contrastava com a transparência luminosa que deixei habitar em mim.
    "When I was young, it seemed that life was so wonderful. A miracle, oh it was beautiful, magical. And all the birds in the trees, well they'd be singing so happily." - The Logical Song.

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