Memórias que não me pertencem

Chama-me o tio Toninho ao quarto da minha avó. Encontrou uma cassete do Natal de 1993 e colocara-a no leitor vermelho em forma de carro desportivo. 
    No ecrã surge a minha mãe com 26 anos. O meu pai, ao lado, tem 29. A minha avó senta-se entre o marido e a sogra e a tia Fernanda, de uma beleza assombrosa, está ali à beira. O Toninho, de cigarro na boca, agiliza-se à procura do queijo da serra e insiste ostentá-lo para a câmara. O meu primo Hugo, agora pai, era na altura uma criança de seis anos.
    O Hugo era irrequieto. Hoje em dia acusam o filho Rodrigo de traquinice, mas identifico agora as sementes. Vai mordendo a mão do pai por lhe ter oferecido um enfeite que se revelou um pacote de sumo usado. O Toninho ri. Tem na cassete a idade que tem agora o Hugo e as suas vozes são, indiscutivelmente, indistinguíveis.
    O meu avô, de cigarro na boca, mostra-se calado e impassível. "Português Suave", diz-me o Toninho. Só o tinha visto em fotografias e vislumbrei-lhe uma presença estoica. Ia murmurando para a minha avó e chegou a fazer algumas piadas para a câmara. A voz sai-lhe baixa e é, possivelmente, o seu único registo. Dele sobrou um cachimbo, religiosamente à vista de todos num armário da sala.
    A minha avó, agora prestes a fazer 80, tem no vídeo 55. A voz aguda é inconfundível e compete apenas com a do neto. O tom agudo, os gestos e os agradecimentos cerimoniais são os mesmos. 
    A avó Carlota, minha bisavó, observa todos com um sorriso calado. Desenho-lhe um olhar distante, mas saciado, de quem se foi na certeza de ter satisfeito os seus porquês.
    O meu pai é o autor do vídeo e vejo-lhe a silhueta no reflexo dos espelhos. Quando tomam a iniciativa de o filmar, saltita de um lado para o outro e faz caretas enquanto come. Parece-me o bobo da festa e vai-se refugiando na esposa. Ao abrir umas das prendas pergunta, num timbre inocente, se tinha sido o irmão que lha oferecera. É uma pergunta que jamais pôde fazer.
    A minha mãe... a minha mãe continua igual, embora nas filmagens seja bem mais miúda. Numa para sempre necessidade de confortar, vai desviando as garrafas para deixar espaço para as prendas. Governa-se com um sorriso luminoso e parece querer mimar todos igualmente. Mais tarde desembrulha, em gestos leves e infantis, um forno elétrico e analisa as peças em cima da toalha.
    E no meio do urgência festiva de quem não dá pela brevidade do vida, apercebo-me que assim se passaram 25 anos. Que o meu avô já cá não está, que a minha bisavó já cá não está, que o irmão do meu pai já cá não está. Que o Hugo já não é um rapazito, mas um pai. Que o Toninho já não é um barbudo hippie, mas um avô. Que a minha avó é agora bisavó e a que Fernanda, apesar do divórcio, continua parte família. Os meus pais, um casalito recente, têm agora dois filhos e contam com 26 anos de casamento.
    Passaram-se mais de duas décadas e a vida mudou. Daqui a 25 anos ter-se-à passado meio século desde a cassete e eu vou ter 45. Espero que os outros tenham também.

Comentários

  1. Olá parabéns sempre com textos muito bem escritos e com muita inteligência mais uma vez parabéns e obrigado por me lembrares algumas passagens já esquecidas beijinhos tens k fazer um livro com essas recordações beijinhos grandes

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  2. Não me canso de ler-te, nas linhas e entrelinhas. Sempre carregado de emoções... Capaz de prender a respiração e querer continuar com mais. Abraço

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