O conto do Mestre e Aprendiz

    A velha desceu a praça sem olhar para ninguém. Estava enfurecida por lhe terem acabado os nabos e murmurava insultos, amaldiçoando aquele que lhe cobrara tanto por uns nabos que nem três dias duraram.
    Entrou de rompante na mercearia e dirigiu-se imediatamente ao balcão onde um jovem nos seus dezassete anos percorria lentamente os seus olhos nas pequenas letras de um grande e poeirento livro de capa dura, que lia.
    - Exijo trezentas gramas de nabos e ainda uma cenoura por causa do incómodo! - gritou-lhe.
    O rapaz não sabia do que ela estava a falar. O único incómodo era ela, que interrompia a sua leitura. Mas, sobressaltado, levantou-se e foi pesar os nabos à senhora, acrescentado depois uma cenoura no saco, que lhe entregou. A velha arrancou o saco das mãos do rapaz e saiu disparada da loja sem lhe pagar pelo seu serviço.
    Despreocupado, o rapaz voltou-se a sentar na sua cadeira e debruçou-se sobre o livro para retomar o tempo perdido por este acontecimento. Virou a página do livro onde estava um pentágono desenhado. Estava a aprender símbolos mágicos para os poder utilizar na prática de rituais, onde ainda era iniciado. Seu pai, o seu mestre, deixara-lhe o livro como herança e Vick, um velho de barbas brancas e seu atual mestre, acompanhara-o desde o falecimento do seu pai.
    Dizem na cidade que o seu pai morreu durante um exorcismo, possuído por um demónio, mas isso são apenas rumores criados pelo povo que, visto tratar-se de temas do oculto, se espalhou rapidamente de boca em boca. Mas o rapaz sabe que isso não é verdade e que o pai teve uma triste e, salvo seja, humorosa morte enquanto semeava o campo.
    - Já leste tudo desde o cinco ao sete? - perguntou-lhe Vick (que acabara de entrar na loja), referindo-se aos capítulos - Então anda.
    O rapaz começara a ler o sexto capítulo antes do triste evento da velha, mas o outro fez-lhe sinal para que terminasse a leitura por aquele dia e o acompanhasse.
     Passearam pela praça sem nada dizerem um ao outro. O rapaz carregava o pesado livro por baixo do ombro e estava em transe por ter passado tanto tempo a ler. Quando olhou para Vick, viu-o a acender o charuto, que recordava os velhos hábitos da sua vida.
    Pararam ao anoitecer, e foi só quando o primeiro lobo uivou para uma lua escondida que o rapaz arrumou a sua mente e se apercebeu de que tinham deixado os portões da cidade para trás.
    Acenderam uma enorme fogueira que libertava um intenso fumo que se perdia na noite e deitaram-se após terem digerido uma grande dose de bagas, esquecendo-se das obrigações que tinham deixado na cidade.
    Vick já ressonava, sendo o som do seu ressonar ainda mais alto que o da lareira a crepitar, e o rapaz recusava-se a dormir. Os seus olhos fechavam-se, mas rapidamente se abriam quando a noite fazia o mínimo som. Decidiu, portanto, sentar-se e olhar a lareira.
    Tinha sido uma boa pessoa - Vick - melhor ainda que um Mago, e era difícil algo superar a sua proeza como Mago. Nascera nos países de Leste, e a sua rebelde infância levou-o a sair de casa ainda muito cedo. A sua vida foi posta muitas vezes em risco devido a infantis apostas que tinha feito com os seus colegas da altura. Chegou mesmo a morrer, certa altura. Mas, como por milagre, os seu coração voltou a bater e ele acordou com um inspiro doloroso.
    A partir desse momento, Vick era uma pessoa nova. Percebeu que, como todos, temos uma missão neste mundo e que os tempos de boémia deviam chegar ao fim.
    A sua longa viajem pelo mundo começou nesse mesmo dia e levara-o a uma pobre cidade, onde o amor por uma criança cujo pai tinha falecido nasceu.
    Não o largou desde então.
    Não queria que a criança cometesse os mesmos erros que cometeu na sua juventude, mas não o queria tornar num cão mimado. Queria que ele fosse um homem sóbrio, habituado à rudeza da vida.
    Mentiu-lhe sobre o seu falecido pai. Dissera-lhe que tinha sido um Mago e que lhe tinha deixado um livro escrito por ele mesmo para o iniciar nas práticas dos rituais.
    O velho não achava que tivesse dito uma grande mentira ao jovem. Sabia que ele compreenderia quando a verdade lhe fosse revelada.
    O sono continuava a não aparecer.
    Os seus olhos saíram da lareira e percorreram tudo que estava à sua volta. A sua atenção centrou-se num espantalho ao longe. A sua cabeça era feita pelos pêlos de vassoura e o seu tronco era o cabo. Ao contrário do que deveria acontecer, os pássaros que ainda voavam não o temiam. Aliás, até pareciam gostar dele, adormecendo nos seus braços de palha.
    Decidido que não ia dormir naquela noite, o rapaz levantou-se. Despiu o seu casaco de pele de ovelha e o resto da sua roupa e dirigiu-se ao pequeno lago a uns escassos metros. Sentou-se numa superfície revestida por musgo e mergulhou os pés na água, gelando assim todos os seus membros.
    Conseguiu perceber porque Vick o trouxera para fora da cidade. O mundo além das muralhas era enorme. Comparado a isto, a sua cidade era apenas um minúsculo palito insignificante.
    A floresta parecia sorrir-lhe. «É um encanto o que a vida nos traz», pensava. O rapaz era apenas mais um ser humano no mundo, rodeado por milhares de outros seres, mas a floresta cuidava e olhava por ele, tal como fazia, faz e fará por todos os outros.
    Deixou-se molhar até à cintura e após se habituar à temperatura da água, mergulhou, deixando a água possuí-lo em força.
    Quando saiu do lago estava exausto devido ao tempo que passara a nadar. Secou-se com uma camisola que antes tinha vestida e aqueceu-se junto à lareira, onde acabou por adormecer.
    A semana seguinte foi passada em peregrinação. Os ensinamentos do velho eram cada vez mais exigentes de percepção, mas as suas aulas deram ao rapaz uma maneira diferente de ver o mundo e tudo em seu redor.
    Os anos foram passando até ter terminado duas décadas de longos percursos e viagens por terras longínquas. O primeiro livro de rituais do rapaz era apenas mais um que o seu pobre cavalo tinha que carregar. Por vezes, por compaixão, o rapaz desmontava do seu cavalo para que este suportasse "apenas" o enorme peso dos seus livros.
    O rapaz, agora um homem robusto, formara-se em Filosofia pelos ensinamentos de Vick e era uma pessoa de uma esperteza invejável. Tal como Vick, este também se tornara um Mago, com uma missão no mundo que já se tinha dado a reconhecer.
    Foi numa bonita terra Oriente que Vick faleceu uns anos depois, ordenando ao seu aprendiz que não chorasse a sua morte pois o futuro dissera-lhe que se voltariam a encontrar.
    Impossível foi conter as lágrimas que não secavam. Como era possível não chorar a morte daquele que o acompanhara a vida toda? Que o ensinara tudo o que sabe e que o tornou no que era agora. Vick ensinara-o a maneira correta de ver o mundo, mas como conseguia ele ver o mundo sem a presença do seu amável irmão?
    Após semanas de luto o rapaz teve que sair daquela cidade que lhe trazia memórias ainda muito vivas. Embarcou num barco e retomou a sua viagem pelo mundo fora, apontando no seu bloco de notas tudo o que via, dirigindo as cartas a Vick.  
    A viagem à volta do mundo continuou até que o rapaz, agora velho, retornou à sua cidade natal.
    Reabriu a sua loja de venda de fruta e os dias, bastante monótonos, eram preenchidos com leituras de livros lidos e relidos durante o tempo da sua peregrinação.
    No dia em que completou cem anos, uma bela rapariga loira entrou na sua loja para comprar maçãs e desejou-lhe, muito timidamente, um feliz aniversário.
    As pessoas mais chegadas ao velho prepararam-lhe uma grande festa para comemorar o seu um século de existência; mas este, pouco apreciador de festas onde a bebedeira é grande, ausentou-se e retornou aos seus aposentos.
    Pouco depois, entrou na loja a menina que, em movimentos lentos, retirou uma concha do bolso e a estendeu como prenda de aniversário.
    As visitas da menina passaram a ser frequentes. Todos os dias ela escutava o que o velho tinha para contar, até que a arte da Magia lhe despertou interesse e ela seguiu as pisadas do seu mestre.
    O velho tinha cento e trinta anos quando ela se tornou uma feiticeira.
    Tiveram que abandonar a cidade pois a caça às bruxas tinha começado e foram para uma outra cidade - também esta rodeada por muralhas - onde foram bem acolhidos pela população, apesar do seu estatuto.
    Todas as tardes iam ao bosque ver o dia transformar-se noite. Ela subia à árvore para olhar melhor o sol a pôr-se, e a sábia idade do velho permitia-o apenas encostar-se a um muro, protegido do vento pelo gasto casaco de pele de ovelha.
    - Em que pensas, meu senhor? - perguntou ela ao velho Mago, que agarrava firmemente o seu bastão.
    - Que serás uma grande escritora - respondeu-lhe o velho sem a olhar.
    A rapariga, agora adulta, corou após tantos anos.
    - Como sabes que gosto de escrever?
    O velho deu uma gargalhada - Meu amor, eu sei que sou velho, mas ainda cá estou não estou?
    A rapariga sorriu.
    - Vais ser a minha trisavó - continuou o velho - Vi-o. Logo que entraste naquela loja.
    Ela desceu da árvore e olhou-o nos olhos azuis, curiosa.
    - Porque não mo disseste mais cedo? - inquiriu.
    - Só vai acontecer daqui a cento e quarenta e seis anos, meu amor. Qual é a diferença entre ter-te contado agora ou há trinta anos atrás? - respondeu-lhe com um beijo na testa.
    De seguida afastou-se ligeiramente - Infelizmente não nos vamos encontrar mais após esta vida, minha filha...
    Uma lágrima caiu-lhe do olho, antes de perguntar num soluço:
    - Porque não, meu senhor?
    - Porque o tempo nunca mais nos permitirá, querida - retorquiu, melancolicamente.
    O jantar foi porco assado e o velho prometeu arrumar a loiça para que a sua aprendiz se fosse deitar mais cedo.
    Após ter lavado a loiça e arrumado a casa, este dirigiu-se ao quarto da sua aprendiz e, de maneira a não a acordar, deixou-lhe um envelope selado (com o símbolo de uma árvore) debaixo da almofada. Este guardava uma pequena quantia de dinheiro, uma concha e uma carta.
    O velho despiu uma ultima vez o seu casaco, deitou-se com o bastão pousado no peito, e adormeceu para não mais acordar.
 
    Era dia de anos de um criancita de um país nórdico.
    A sua família era pobre e ela sabia que não ia receber qualquer prenda, mas a sua mãe surpreendeu-a com um formoso embrulho que tapava um livro com uma história muito comovente sobre a vida da escritora.
    - Mãe, porque me deste este livro? - perguntou a menina ao completar a leitura do seu livro.
    A mãe não respondeu. Saiu da sala e quando voltou trazia um envelope bastante peculiar. Era muito amarelo, de uma amarelo torrado mas já gasto. Parecia velho, e a menina gostava disso. O selo do envelope foi o que mais a entusiasmou - era um carvalho muito bonito.
    - Porque a tua trisavó assim o quis - respondeu por fim a mãe.
 
    Poucos anos se passaram e a menina tornara-se uma bela adolescente de dezasseis anos.
    Num dia incerto, a menina entrou muito corada em casa. Não conseguia falar do nervosismo e por isso não respondia à mãe que, aflita, lhe foi buscar um copo com água.
    Quando finalmente, após dois goles de água, a menina recuperou o fôlego, contou à mãe que um rapaz lhe tinha feito uma serenata no meio da praça, e que toda a gente tinha visto!
    - Ah, o amor! - exclamou a mãe às gargalhadas, devido ao estado eufórico da filha - e gostas dele?
    A menina acenou com a cabeça
    - E diz-me lá então o nome desse sortudo - pediu-lhe.
    A filha inspirou profundamente antes de responder:
    - Vick.
 

Comentários

  1. Filipe continuas com muita inspiração,parabens gostei muito e tenho muito orgulho em ti,querido netinho beijinho da avó nuvy

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