Uma ode em três partes

CAPÍTULO I
Conheci o Zé Carvalheiro numa ação de distribuição de bebidas gaseificadas. Fomos contratados para carregar mochilas térmicas de 15kg pelo verão infernal de Lisboa e só nos safou as que fomos bebendo à pala durante oito horas. Mais tarde reencontramo-nos numa ação de distribuição de mentos, mas nem as caixinhas que sobraram compensaram o preço que recebíamos à hora.
    Mas já não sei porque raio terá sido, ficamos amigos.  
    O Zé estudou Belas Artes e agora é ilustrador no Público, mas na altura andávamos a fazer estes trabalhinhos de caca. Por vezes montava barracas na Feira da Ladra para exibir os seus trabalhos e cheguei a comprar-lhe um autocolante com uma ovelha que dizia "Life is a - meeeeh – zing", que guardei religiosamente na carteira.
    Uns meses depois descobrimos que éramos vizinhos. E em alturas em que eu não estava para aturar os 4 marmanjos com quem vivia, íamos à Paiva Couceiro ver os velhotes discutir e os putos descalços disparar boladas contra os carrinhos de bebés. Fumávamos um cigarro cansado, e ele trazia sempre uma lata de Super Bock do minipreço.
    Num desses serões, aborrecemo-nos do acumular de pombas e fomos até casa dele para deixar o dia cair em frente à estante de livros.
    Fui ajustando o pescoço à lombar dos livros e, no meio daquela salgalhada, encontrei um tal "As putas das batatinhas", do Miguel Melo.
    “Este gajo não é ator?”, perguntei.
    “Sim, dos Batanetes, lembras-te? E tem ali um restaurante na praceta.”
    “A sério?”
    “Come-se bué bem por acaso, e é barato.”
    “E o livro é sobre o quê?”
    “Puto, são tipo crónicas, é genial. Este gajo é maluco, vais adorar ler. E por acaso a escrita é parecida com a tua.”
    Levei o livro emprestado e comecei a lê-lo durante o caminho. E realmente foi das coisas que mais gozo me deu nos últimos tempos. É uma espécie de biografia, cujos capítulos começam com peripécias e terminam com receitas. Coisas como o irmão gémeo, o Pedro, ir votar por ele nas eleições ou assinar autógrafos em seu nome. 
    Com um sentido de humor sublime e despretensioso, conclui os parágrafos de sex, drugs & rock and roll com um "amigas, não compliquem, para o pequeno almoço, torrada e galão. Para grandes males, água e sabão.
    “Então, mas podemos passar no restaurante dele, que fica a caminho de casa”, disse-me o Zé, uns dias depois, quando lhe fui devolver o livro.
    “Bora! Como é que se chama?”
    “O Limbo” - que era exatamente o nome do separador, relativo a uma peça do São Luiz.
    O restaurante ficava numa rua onde, meses antes, andei desenfreado a atravessar à frente dos carros para correr atrás de um puto da Casa Pia que tinha fugido dos cuidadores. 
    E lá está o Melo ao balcão. 
    “Tenho que lhe pedir um autógrafo”, digo, “queres?”
    “Não, eu não sou muito dessas coisas.”
    Pá, eu também não, mas é uma memória que há de sempre remeter para este momento da minha vida.
    Entro sem bater: "Miguel, fazes-me aqui uma assinatura?" e ele "no separador ou no livro?" e eu "no separador, que o livro não é meu", e ele, "E como é que te chamas?", "Filipe Amorim, também sou ator, pode ser que um gajo se cruze", "Claro que nos cruzamos" - fala num tom muito lento - “sabes que anda aí um gajo brasileiro que quer fazer uma série disto para a Netflix"
    Enquanto o vejo, lentamente, assinar a dedicatória, sai-me de rompante:
    “Não és o Pedro, pois não?” 
    “Não, não”, riu-se, “mas ele por acaso esteve aí”.
    Terminámos a conversa com um "vê lá se passas aqui um dia destes" e encontrei o Zé à minha espera uns metros à frente.
    “Olha, mas se tu gostaste assim tanto do livro, fica com ele.”
    “A sério?”
    “Claro.”
    “É pá, então tens que mo assinar também.”

O Zé a meio de piscar os olhos

CAPÍTULO II
Umas semanas antes da estreia do "Chuva de Verão", fomos para Vila Nova de Mil Fontes fazer entrevistas para promover o filme. Tínhamos filmado naquela mesma casa dois anos antes e o fim destas sessões significava que o filme deixaria de ser só nosso e já não havia nada que me fizesse regressar aquele local.
    Olhei uma última vez para os pinheiros que se estendiam da casa até ao rio e no final do dia regressei para Lisboa de motorista, o Senhor José Lourenço. 
    Como não gosto de me sentar no lugar de trás, fui para o da frente, e duas horas depois já não havia cá "Senhor José Lourenço", mas sim "José". Ficámos amigos. Tem 3 filhas, 9 netos, e 70 anos. 
    "Vá" ousei, porque a minha avó também é assim, mete mais anos onde não existem, "mas são 70 anos ou 69?"
    Ele olha para mim, cúmplice: “Pronto, vá, são 69. Mas para o ano já faço 70!”
    A meio diz-me, um pouco receoso, como se sentisse estar a ultrapassar a linha do profissionalismo "Filipe, olha uma coisa... já saí de Lisboa há algum tempo e estou esfomeado. Importas-te que passemos em algum sítio para comer?"
    "Ó senhor José, claro que sim!". 
    Então parámos numa tasca. Eu pedi uma bebida e o José devorou dois pães com queijo.
    O por do sol alentejano escureceu enquanto falávamos da vida, da morte dos pais, do norte do país, e de tudo o que acontece pelo meio. Deixou-me à porta de casa depois de um cansaço que, nem distribuído, se aguentava, e ficou a promessa de nos revermos um dia destes. “Sempre que quiseres liga-me, está bem? Posso nem atender logo, mas depois devolvo.”

O José e a tasca dos queijos

CAPÍTULO III
Passaram-se 2 anos desde que conheci o Zé, 6 meses desde O Limbo e 4 meses desde Mil Fontes. Estamos agora em dezembro, está frio e ainda estou a recuperar de uns dias afónico. São sete da noite e só me arrependo de não ter trazido luvas. 
    Levo o gorro puxado até ao nariz e a gola nas sobrancelhas. Percorro a Morais Soares e entro n’O Limbo.
    É cedo. O restaurante está vazio e o Melo recebe-me ao balcão. Numa mesa encostada à parede está o José. O Miguel anda por ali atarefado a preparar o espaço e o José vai molhando umas batatinhas fritas em maionese com pimenta.
    Uns dias antes tinha estado em Viana do Castelo a filmar o próximo filme do Vicente Alves do Ó e encontrei lá o Melo. Lancei-lhe um grande sorriso e cumprimentei-o. 
    “Miguel! Passei no teu restaurante há uns tempos, lembras-te? Assinaste-me o livro."
    “É pá, eu não sou o Miguel, sou o Pedro”, disse-me, lentamente, “mas por acaso o meu irmão também esteve aqui a filmar uns dias”.
    A partir daí, sempre que nos encontrávamos nas pausas, trocávamos uma palavras. 
    "Mas olha gostaste do livro, foi?"
    "Foi, gostei mesmo. Adorei a escrita."
    "Olha, o meu irmão deve ter ficado mesmo contente que lá tenhas ido, fizeste bem".
    Sugeriu-me que fosse lá comer a uma segunda feira, porque vão lá os músicos jantar e bebericar enquanto tocam jazz. 
    Quando as filmagens terminaram, liguei ao Miguel e reservei mesa.
    Contei-lhe essa história quando cheguei e abracei o José, que disse que quase não me reconhecia por estar tão encapuçado. 
    Fui ao balcão pedir umas "putas de umas batatinhas" e recebi a aprovação orgulhosa do mestre: “É mesmo assim que se pede. As pessoas dizem que querem batatas, mas não são batatas; são as putas das batatinhas".
    Pedimos outra ronda de bebidas e o Melo ia-se juntando à conversa. 
    “Mas tu tem cuidado com a mota. Sabes que o pneu às vezes enfia-se na linha do elétrico e aquilo começa a escorregar” e terminou o tema com um "Ó, mas paciência, parado ou a andar, tu vais acabar por cair, é sempre assim"
    Entraram os primeiros músicos e clientes, e os primeiros clientes que eram músicos. Eu pedi umas ricas favas e o José um prego no prato com mais batatinhas que são putas. 
    "Tens que guardar memórias físicas", disse, "Não é só fotografias, tem que ser mesmo coisas que tu possas tocar e lembrar-te delas.
    Tirei-lhe uma foto.
    "Sabes que tenho uma man-cave"
    "Tens uma man-cave?"
    "Na casa antiga tínhamos muitas recordações dos meus avós e dos meus pais e não me queria desfazer daquilo. Então um dia estava a passar de mota e vi uma loja à venda e comprei-a. Fiz uma mezanine. Tenho lá o meu escritório e uma kitchenet”.
    E depois fica mais sério: "Sabes que há 8 anos a minha mulher teve cancro. E caso aquilo tivesse corrido mal, eu tinha ido viver para lá. Não me consigo imaginar a viver sozinho num sítio em que fui feliz com alguém".
    Depois muda de assunto, mas interrompe-se para pedir outra imperial. Quando vai para retomar o assunto, esquece-se.
    “Sabes que com a idade fica-se esquecido.”
    “Ó então, se eu já sou.” 
    Falámos de namoradas, autocaravanas, viagens pela Europa, paixões, profissões, e eu ia-me tentando lembrar das lições que só a tal idade traz.
    "Filipe, mas tu achas que eu preciso de trabalhar como motorista? Eu não preciso do dinheiro. Tenho reforma, estou cheio de terrenos que até recuso vender. Mas eu quero é isto. É viver. É ter experiências. As coisas e as pessoas não aparecem por acaso, sabes”.
    Pedimos mais umas batatinhas.
    "E tu achas que eu com a tua idade tinha este à vontade que tenho agora? Esta só passei a viver assim mais à vontade a partir dos 50. E não sou um homem de luxos! Para quê? Tenho a minha scooterzita, um jipe de 1980 e chega-me. Então eu nem casa tenho, é arrendada. E achas que isso me chateia? A pior coisa do ser humano, sabes qual é? Demasiada ambição. O que me importa é isto, estar aqui, a viver."
    "Está tudo bem?", o Melo de vez em quando vinha ter connosco.
    Ó, se estava. Eu cá estava maravilhado. A música, a casa cheia, a comida, e a conversa.
     "Filipe, foco. Tu és bom no que fazes, e és focado. As coisas estão a acontecer, não te percas. Foca-te no que gostas e vai fazendo por te manteres. Eu estou na reta final da minha vida, mas tu estás a começar. Vais ver que vai correr tudo bem. Queres café? Eu estou cheio” e deixou-me promessa de que poderei contar "enquanto for vivo", com um conselheiro para a vida.
    Saímos de lá por volta das 22h, para dar a vez à bicha que se acumulava à entrada. Deixámos para trás o contrabaixo e a bateria e fomos até à scooterzita.
    "Senta-te, queres-te sentar?"
    Sentei-me, liguei o motor, e falámos mais um pouco.
    "Já sabes. Foco. Vá, da cá um abraço", e buzinou quando passou por mim.

O Melo, o José e as putas das batatinhas


EPÍLOGO
O Zé entretanto mudou de casa. Eu entretanto mudei de casa. O José deve ter recusado vender um terreno e o Melo continua a fritar as batatinhas. Alguém há de estar a distribuir garrafas térmicas e o sol alentejano há de se pôr um dia sem que ninguém o veja.
    Foi-me custoso chegar a este estado em que percebo que a felicidade está na temperança; e que o bom e o mau não duram para sempre. A vida é ação, reação, remar e deixar ir. Sei que as infelicidades têm a felicidade de se tornar boas histórias e isso é o suficiente para me deixar entusiasmado, aceso e desperto. 
    E se é verdade que, em alturas de menor atividade, ainda sofro com saudades de casa, também é verdade que tenho expandido a minha casa com estas pessoas que me vão acrescentando. Acima de tudo estou grato, e mais próximo de perceber o porquê de isto tudo.
    Um dia disseram-me que não tenho que compreender o propósito da vida, apenas tenho que saber como a navegar. Por agora, tem sido tudo muito bonito e eu tenho sabido olhar. As pequenas coisas são tão grandes quando as vemos de perto.

Comentários

  1. Genial! Quando fores actor em Hollywood, estes registos e magníficos relatos teus serão deliciosamente relidos por ti, e darás conta que em tão tenra idade já eras tão afortunado e amado... Continua focado Filipe, e o céu é o limite...

    ResponderEliminar
  2. Filipe é um prazer ler o que escreves e sentir o teu gosto pela vida, pelas pessoas que vais conhecendo, pelos sitios que conheces ou onde trabalhas , tiras sempre algo de bom! És uma pessoa muito genuina . Nos dias que vão correndo já é muito dificil encontrar essa qualidade no ser humana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Oh Madalena, obrigado por tambem fazeres parte do percurso. Um beijinho grande!

      Eliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Isto não é uma pub

Nas traseiras e na cozinha