Dias que são Matinés

É impressionante a rapidez com que o tempo passa. Fui ao cinema com a Beatriz e percebemos que já se passaram 4 anos desde o verão em que tínhamos namorado. Foram as semanas de fantasia de dois putos que se conheceram numa audição e estavam prestes, cada uma à sua maneira, a sair do ninho.
    Lembro-me que no último dia juntos, levei-a a uma aldeia para que se despedisse da campa da avó. Chegados ao cemitério, encontrámos os portões fechados, e ajudei-a a saltar o muro e esperei, enquanto os corvos rasavam por perto.
    Depois das rezas, fomos a um rio e deixamo-nos deslizar pela rocha escorregadia até à água que refletia o verde das árvores. Não me lembro de mais nada desse dia, além de que me esqueci dos faróis do carro ligados e tivemos que bater à porta das casas ao longe para encontrar alguém com carregador. 
    Hoje em dia encontrámo-nos sempre por esta altura quando vimos visitar a família. Lembro-me que há uns anos, meia receosa com a resposta, me perguntou: "alguma vez escreveste sobre mim?". Nunca. Mas não sei porquê, achei nesta madrugada o momento certo para o fazer.
    O filme que fomos ver era uma merda. Um blockbuster de que não me arrependendo, porque gosto de ver todos, mas que não é por isso que não deixa de ser uma merda. No final sugeri irmos ver uma peça ao Theatro Circo, que acabou por também ser uma merda. Só não saímos a meio porque ela não teve coragem. É que no cinema ainda dava para falar; no teatro bastava mexer o cotovelo que ecoava por toda a sala. Ia adormecendo, de mãos dadas, no ombro dela, e só despertei porque alguém deixou cair o telemóvel e parecia que tinha caído um meteorito.
    A Beatriz mudou-se de South Hampton para Londres no mês passado e eu, habituado às temperaturas de Lisboa, fazia por não tremer dentro do casaco de couro. Também sou daqueles que acha que é hoje que não vai estar frio, mas depois está sempre. 
    "Ó, são só 8 graus", disse, depois de olhar para o telemóvel, "em Londres estão 5". 
    Pelo caminho vimos um senhor ao longe acender um cigarro e, lentamente, cair no chão. Primeiro os joelhos, depois o tronco, o peito e, quase como quem a pousa, a cabeça. Fui a correr levantá-lo e, se era baixo e leve, não parecia, porque se apoiava totalmente em mim. 
    Estava muito atordoado. Existe uma energia qualquer que nos afeta sempre que algo envolve a cara ou a cabeça. Basta um toque leve no nariz para todo rosto se contrair. Basta a testa roçar o alcatrão para todo o chão cair.
    Ele chorou no meu braço, e eu não conseguia perceber o que dizia. Diria que parecia ter tido um AVC, mas não percebo nada disso. Além disso, não o conheço e bem que já podia estar assim antes. E, se estamos a ser sinceros, bem que também podia estar podre de bêbado, embora nos tenha jurado que não: "Foi só um copinho", disse, acentuando o "cupinho".
    Arrastei-o para que se sentasse e acabou de fumar o cigarro. Babava-se todo. Insistia para que não chamássemos a ambulância, e não ia ser eu a contraria-lo. Sou da opinião que cada um é dono de si e deve decidir como quer ficar ou partir.
    Ele ia passando a mão na testa, como que a dispersar a névoa que a queda trouxera, e parecia, aos poucos, ganhar noção do espaço. Uma senhora que assistia à cena, a Carla, juntou-se a nós e, coincidência das coincidências, era assistente social.
    Sugeriu que o levássemos até casa, e assim o fiz, em esforço, aguentando o peso dele no braço, enquanto as duas mulheres lhe passavam a mão nos ombros.
    O Sr. Fernando estava a viver num alojamento local, num quarto onde só cabia uma cama de solteiro e alguns bancos que usava para pousar coisas. Arrumei-lhe sardinha frita e arroz num canto em cima das cuecas, e sacudi os restos de comida da cama. Ajeitei os lençóis e deitei-o, ainda calçado.
    "Não, não, não, que assim vou vomitar", disse, depois de tossir e babar-se.
    Com cuidado, voltei a sentá-lo. Aproximei-me apenas o suficiente para ter força para o mover, e tempo para me desviar caso vomitasse. A Carla estava sentada à sua direita, de mãos dadas, indiferente à saliva que ia escorrendo sem dar para antever onde cairia.
    O Sr. Fernando tem 61 anos e já está a ser acompanhado pela Cáritas, onde vai buscar comida todos os dias. Recentemente e no espaço de meses, morreu-lhe a filha, o filho, a mulher divorciou-se e o patrão despediu-o.
    "Eu vou-me matar", dizia, choroso, "é hoje que me vou matar. Consigo mesmo ver a morte aqui à frente, olhem, aqui, estão a ver?" e as lágrimas misturavam-se com a saliva. 
    Eu engolia em seco. Tendo lidado com suicídio de perto, tudo isto me afetava.
    "Não vai nada", dizia a Carla, e conseguimos que prometesse que, se não se matasse esta noite, ela o visitava na manhã seguinte.
    Ele olhou para mim, sério, olhos nos olhos, numa pausa que não é tão quotidiana, mas de cena - porque só na ficção nos é permitida a intimidade de fixar o outro sem estranheza: "Ela está a mentir, não está? Vocês estão-me a mentir", chorou, "olhem que eu não mereço que me mintam".
    Fez questão de se levantar e nos levar à entrada para se despedir. Acenou-nos e vi-o desaparecer atrás da porta. Hoje, enquanto escrevo, quero acreditar que a Carla lá está, e que alguma coisa boa há-de estar a acontecer.
    "Esta altura do ano é sempre mais difícil, sabem", disse-nos ela.
    A Beatriz e eu ficamos ali, de pé, sozinhos no meio da rua, num abraço longo e apertado, que veio do nada e sem precisar de perceber o porquê. 
    No final da peça, fui buscar as pipocas que tínhamos deixado na bilheteira e encontrei o Diamantino. Que saudades tinha dele. Passámos tantas aventuras juntos, em matinés e conversas de carro. Gosto muito dele. Superou um cancro grave há uns anos e, desde que o conheço, dedica-se inteiramente ao teatro amador com o maior profissionalismo do mundo. Nos ensaios que tínhamos até às tantas da noite, dava por mim apreciar aquele grupo de adultos cheio de deslumbre e admiração, sem perceber o porquê de, depois de um dia longo, irem para um palco frio ensaiar Plauto sem nenhum retorno além desse mesmo. Para mim, a Nova Comédia Bracarense era um ponto para chegar a algo. Para eles, era o propósito final.
    De vez em quando vinha-me o cheiro do Sr. Fernando, que se há de ter entranhado nas minhas roupas. Têm todos a mesma idade, eles - o Diamantino, o meu pai e o Sr. Fernando; e é assustador como os anos podem ser tão diferentes.
    “Tens que aparecer cá mais vezes”, disse o Manel, que nos tinha encenado em todas as peças, “olha que eu tenho acompanhado a tua carreira”. 
    Ri. A minha carreira. E depois sorri. A minha carreira.
    O Diamantino despediu-se com um “Acho-te muito talentoso. Não desistas, tens um bom caminho a percorrer” e sei que só não me espetou um dedo no cu porque a Beatriz estava ao meu lado.

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